ESCREVER É ECOAR: os diálogos entre os textos

 Olá, leitores! Que bom encontrar vocês mais uma vez nesse nosso cantinho de palavras que pulsam, se misturam, se olham nos olhos. ✨📎 Hoje o papo é sobre algo que está em todo texto, mas que a gente nem sempre vê: os vestígios do outro que vivem na nossa produção. Ou, nas palavras do pesquisador Charles Bazerman (2021), a intertextualidade.

Sim, isso mesmo: texto nenhum caminha sozinho. E quem escreve nunca escreve do zero. Tem sempre um eco, uma memória, uma resposta atravessando a página.

🎙️ Tudo já foi dito, mas não do seu jeito

Você já ouviu alguém dizer que “nada se cria, tudo se copia”? Pois é. Não é bem assim. Na verdade, nada se cria sozinho. Toda vez que a gente produz, a gente conversa com outros textos, mesmo sem percebermos. Isso é intertextualidade: o modo como os textos se apoiam em outros textos pra existir. E não, isso não é plágio, é construção. É diálogo. É trama. É texto.

📌 Bazerman explica: texto é resposta

Charles Bazerman, um dos nomes mais importantes nos estudos sobre escrita, nos lembra que todo texto é uma resposta a algo, e um convite para novas respostas.

Escrevemos porque algo nos provocou. E, ao escrever, provocamos também. É tipo conversa de grupo do WhatsApp: alguém solta uma, outro rebate, um terceiro manda um sticker e, de repente, nasceu um discurso coletivo.

✍️ Como isso acontece?

Citação direta: É quando você traz a fala do outro com aspas, nome, sobrenome e tudo. Um trecho entre colchetes, com crédito declarado. É o modo mais direto de colocar outra voz na sua escrita. Bazerman chamaria isso de intertextualidade explícita, aquele tipo que ninguém pode negar.

Imagem 1:


Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=358941725473355&id=115813306452866&set=a.129124708455059

Paráfrase: Você não copia, mas reconta. Pega a ideia do outro, diz com suas palavras, ajusta ao seu tom. A ideia é de fora, mas a forma já é sua. Aqui, o diálogo é mais sutil, mas ainda assim presente.

Imagem 2:

Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/253397916529057474/

Esse tipo de meme é uma brincadeira baseada na combinação entre paráfrase e citação original. A imagem utiliza um tom cômico e popular (“O mundo tá uma putaria”) para expressar uma sensação de caos e instabilidade, e então “traduza” essa ideia de forma mais formal e intelectualizada por meio de uma famosa citação de Zygmunt Bauman: “Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar.”. A graça do meme está justamente nesse contraste entre o modo direto e vulgar de dizer algo e a forma elaborada que um autor consagrado usaria para falar da mesma questão. Assim, o meme faz uma apropriação humorística do pensamento de Bauman, criando uma nova camada de sentido a partir da intertextualidade.

Menção ou alusão:
É quando você não diz, mas sugere. Uma referência indireta, uma deixa pro leitor atento que “vai pegar a referência”. Pode ser uma frase famosa, um título de filme, um versículo, um meme. Você não nomeia, mas provoca o reconhecimento. É jogo de cumplicidade.

Imagem 3: 
Disponível em: https://fenasps.org.br/2017/04/13/nao-a-reforma-trabalhista/

Na mitologia, os gregos ofereceram um enorme cavalo de madeira como presente aos troianos, que o aceitaram sem perceber que dentro dele estavam soldados inimigos. Ao entrarem na cidade, os gregos atacaram e venceram a guerra. Na charge, o “presente” anunciado pelo governo(a reforma trabalhista) é representado pelo cavalo com os dizeres “fim dos direitos”, sugerindo que, por trás da promessa de benefício ao trabalhador, esconde-se um prejuízo. A fala do personagem “É presente de grego!” evidencia esse jogo de sentidos. Assim, só é possível compreender plenamente a crítica se o leitor negociar os sentidos e identificar a intertextualidade com a narrativa clássica, percebendo como a história antiga é reativada para denunciar estratégias políticas atuais que, sob a aparência de generosidade, ocultam danos.

Comentário ou avaliação:

Às vezes, o texto do outro entra na sua escrita só pra ser comentado, criticado, contestado. Você traz uma ideia alheia não pra repetir, mas pra posicionar. Aqui, a intertextualidade se torna argumento, é debate, não reprodução.
Ex.:  Em um artigo sobre os desafios da igualdade de gênero, a autora (eu) escreve: "Quando Rousseau dizia que à mulher cabia agradar e ser submissa, estava apenas reproduzindo a lógica patriarcal de seu tempo, uma lógica que ainda resiste, mesmo disfarçada de liberdade de escolha." Nesse caso, a citação a Rousseau não vem para respaldar a argumentação, mas para problematizar o pensamento de um autor clássico. A intertextualidade opera como crítica: expõe contradições históricas e atualiza o debate sobre o lugar das mulheres na sociedade. O texto do outro vira espelho, mas um espelho rachado, que ajuda a enxergar e desconstruir discursos naturalizados.

Estilo ou terminologia compartilhada:

Sabe quando você usa aquele jeitinho acadêmico de escrever? Ou quando seu dizer parece saído de uma plenária dos movimentos sociais? Isso também é intertextualidade: você adota um estilo discursivo reconhecível, aquele "jeito de falar" que remete a uma comunidade, a um gênero, a um lugar de fala.

Ex.: Num artigo acadêmico sobre políticas públicas, a autora escreve: “É preciso desconstruir as narrativas hegemônicas e pensar em práticas emancipatórias que garantam a equidade interseccional.” Aqui, o vocabulário (“desconstruir”, “hegemônicas”, “práticas emancipatórias”, “interseccional”) remete diretamente ao discurso acadêmico crítico, influenciado por teorias pós modernas feministas e decoloniais. O texto evoca um modo de dizer que já carrega em si posicionamento político e filiação teórica. É como se, só pelo jeito de falar, o texto já dissesse com quem está alinhado. Intertextualidade, nesse caso, não é uma citação explícita, é uma voz coletiva que atravessa a escrita.

Interdiscurso”:

Esse é o nível mais profundo. É quando seu texto carrega discursos maiores, ideológicos, históricos, culturais, mesmo que você não os nomeie. É o mundo falando pela sua voz. É quando a gente escreve sobre política achando que é só uma resenha, ou quando uma propaganda de perfume reproduz padrões de gênero sem perceber. Bazerman aponta que todo texto está inserido num sistema de atividades sociais, e é nesse caldo de sentidos que ele ganha forma.

Ex.: Um comercial mostra uma mulher de salto alto, maquiagem impecável, sexy, caminhando sozinha pela cidade à noite enquanto uma voz em off diz: “Ela é livre. Ela escolhe. Ela conquista.” Mesmo sem dizer diretamente, o anúncio está imerso em discursos sobre empoderamento feminino, individualismo neoliberal e padrões de beleza. A liberdade feminina ali é moldada por um ideal de consumo, em que "conquistar" significa ter poder de compra, e não necessariamente autonomia real. Esse é o interdiscurso em ação: o texto publicitário mobiliza sentidos sociais amplos, que parecem naturais, mas são historicamente construídos. É mais que estilo. É ideologia atravessando a linguagem.

OBS.: Bazerman não usa o termo “Interdiscurso” (que vem da tradição da Análise do Discurso, especialmente francesa), ele trabalha com um conceito próximo: todo texto é situado em práticas sociais, e carrega valores e discursos compartilhados de um campo, instituição ou ideologia. Foi um grifo meu, ok? Não esqueçam que fiquei de dialogar com a minha área sempre que possível!

🖇️ O texto é feito de “colagens”, e isso é potência!!!

Segundo Bazerman, reconhecer essas vozes dentro do texto é fundamental pra entender o que ele diz, como diz e a serviço de quem. Porque sim: tem intertextualidade que reforça discurso,– e tem intertextualidade que desestabiliza:

Um artigo científico se ancora em outros textos pra construir autoridade.

Um meme se ancora em outros discursos pra provocar riso (ou desconforto).

Uma campanha publicitária se apoia em clichês pra nos convencer a comprar.

✏️ Escrever é se posicionar numa conversa em andamento

Quando você escolhe citar Paulo Freire e não Augusto Cury, quando usa uma referência de Rihanna e não de Shakespeare, quando cola um trecho da Bíblia ou uma frase do Racionais, você tá dizendo de que lado quer estar nessa conversa.

Bazerman nos ajuda a entender que a intertextualidade é também política (leitura minha, enviesadíssima, como tem que ser): ela revela o que a gente lê, o que valoriza, quem escuta, e quem escolhe deixar de fora.

📹 INTERTEXTUALIDADE EM VÍDEOS: UMA ANÁLISE 

DIÁLOGOS ENTRE O APOLLO 11 (1969) E O COMERCIAL DA AUDI (2016)

Imagem 4: 


                                      Disponível em: http://www.ubuzznow.com/blog/2016/2/4/audi-commander

🌕 Sobre a Apollo 11 (1969)

Foi a missão espacial da NASA que levou os primeiros seres humanos à Lua: Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins.

Foi um marco tecnológico e simbólico da Guerra Fria.

Representou o auge da ousadia humana, da ciência e da coragem.

Transmitido para o mundo inteiro com imagens históricas da decolagem e da frase: "That's one small step for man, one giant leap for mankind."

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l2o40vS66sQ

🚗 Sobre o comercial da Audi (2016)

Mostra um ex-astronauta aposentado em estado melancólico e apático (sugere-se, até mesmo, sintomas de demência/Alzheimer).

O filho lhe dá a chave de um Audi R8.

Ao dirigir o carro, o astronauta revive as emoções do lançamento de um foguete, com trilha sonora de David Bowie ("Starman").

O carro é apresentado como algo tecnológico, veloz e inspirador, comparável ao foguete da Apollo 11.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xWvvOsBKqTA 

🔗 Como se dá esse diálogo?

O comercial evoca diretamente o espírito da missão Apollo 11 ao retratar o protagonista como um ex-comandante espacial. Usa imagens e sons que remetem ao lançamento da missão, com estética semelhante (luzes, traje, contagem regressiva, aceleração).

O Audi R8 representa uma nova forma de tecnologia visionária, como o foguete representava nos anos 60.

Há uma analogia entre o carro e a nave espacial, sugerindo que o carro também é capaz de levar alguém a “novos mundos”, mesmo que simbólicos.

🎸E a trilha sonora?

A música “Starman”, de David Bowie, carrega a temática espacial e reforça o universo da corrida espacial, ampliando o campo simbólico.

Evoca a cultura pop em torno da exploração espacial e do astronauta como ícone.

O comercial simula cenas de decolagem, com botões, contagem regressiva, som de ignição e aceleração. O close no rosto do astronauta remete ao famoso plano de Armstrong descendo da nave.

A intertextualidade entre a Apollo 11 e o comercial da Audi ocorre principalmente pela alusão simbólica, pela analogia entre tecnologia espacial e automobilística, e pelo resgate do imaginário heroico do astronauta. A Audi constrói uma narrativa que associa seu carro a uma experiência tão marcante quanto ir à Lua, mostrando que a tecnologia ainda pode emocionar, inspirar e levar o ser humano “além”.

DIÁLOGOS ENTRE UMA CENA DE "O GRANDE DITADOR" (1940), DE CHARLES CHAPLIN, E A ABERTURA DA NOVELA "O DONO DO MUNDO" (1991), DE GILBERTO BRAGA

Imagem 5: 


Disponível em: https://tvhistoria.com.br/globo-gastou-fortuna-abertura-novela-tumultuada/

🎬 Cena da "bola do mundo", O Grande Ditador (1940)

O personagem Hynkel (uma sátira de Hitler) dança com um globo inflável, representando o planeta Terra. A cena é acompanhada por música clássica (Prelúdio de Lohengrin, de Wagner). Ele manipula o globo com leveza e prazer, como se tivesse o mundo em suas mãos. A brincadeira termina com o globo estourando, frustrando o delírio de dominação.

Crítica feroz à megalomania dos ditadores.

O mundo vira um brinquedo frágil nas mãos de um homem egóico.

Ironiza a relação entre o poder totalitário e o desejo de controle absoluto.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sGBCsZJRcAI

📺 Abertura da novela O Dono do Mundo (1991)

Elementos principais:

Foco em um "Dono do mundo", com os mesmos ares do ditador. 

Imagens de olhar penetrante, mãos habilidosas.

No globo, há alusão ao mundo feminino ou à perfeição feminina.

Música: “Querida”, bossa de Tom Jobim, minimalista e sensual, acentua o tom de controle, manipulação e poder masculino.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=06QC-rKrO0k&list=RD06QC-rKrO0k&start_radio=1

🔗 Diálogos intertextuais entre as duas cenas:

O mundo como objeto de desejo

Em O Grande Ditador, o globo literal é objeto de delírio, brincadeira e frustração.

Em O Dono do Mundo, o “globo” é simbólico: o mundo como território de domínio do protagonista, seja na cirurgia plástica, no amor ou no poder social.

Figura do homem narcisista e controlador

Hynkel dança com o mundo como se fosse seu.

O “dono do mundo” manipula corpos e sentimentos como um deus moderno.

Ambos têm olhar centrado em si mesmos, indiferentes às consequências.

Fragilidade do poder

O globo de Hynkel explode, revelando a ilusão do controle absoluto.

A novela também desvela, ao longo dos episódios, a falência ética do personagem central, mostrando que o poder, quando desvinculado da moral, se torna destrutivo, embora, na abertura, a bolha não estoure. A cena da “bola do mundo” em O Grande Ditador e a abertura de O Dono do Mundo dialogam intensamente ao refletirem sobre o desejo de controle total, a vaidade masculina e os limites éticos do poder. Chaplin critica o autoritarismo com ironia visual; Gilberto Braga antecipa, com refinamento simbólico, a trajetória de um homem que se julga intocável,  mas que também, como o ditador de Chaplin, verá sua “bola” (seu mundo) escapar das mãos.

💭 Pra pensar junto:

Quantos textos moram dentro do seu texto?

Que frases você carrega sem nem perceber?

Quem você escolhe ecoar quando escreve, fala, compartilha?

Se texto é resposta, o que você anda respondendo, e com quem anda falando?

Que essa postagem te inspire a reler com mais atenção, a escrever com mais intenção, e a reconhecer os rastros que fazem da linguagem esse tecido vivo e coletivo que nos conecta, mesmo à distância.

Até o próximo post (que será o último). E se quiser continuar essa conversa (intertextual, claro), os comentários estão logo abaixo. 💬🖇️📎

RERERÊNCIAS:  

BAZERMAN, Charles. Intertextualidade: como os textos se apoiam em outros textos. In: BAZERMAN, Charles; DIONISIO, Angela Paiva; HOFFNAGEL, Judith Chambliss (org.). Gênero, agência e escrita. 2. ed. Recife: Pipa Comunicação, Campina Grande: EDUFCG, 2021. v. 2, cap. 7, p. 135-161.

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