OS OLHOS TAMBÉM METAFORIZAM: as metáforas visuais e multimodais no nosso cotidiano
Olá, leitores! Que bom ter vocês por aqui, nesse nosso espaço onde palavra, imagem e pensamento se encontram pra conversar – com cuidado, com crítica, com criatividade. 📸✨ Hoje, o assunto é aquilo que muitas vezes passa batido no meio da correria: as imagens que dizem mais do que mostram.
A palavra “metáfora” vem do grego metaphorá,
que significa literalmente “transferência”. Na Antiguidade, já se entendia a
metáfora como esse movimento de transportar sentido de um lugar para
outro. Ao longo dos séculos, ela se consolidou como um recurso típico
da linguagem poética – mas nunca se limitou a ela. Pelo contrário: metáforas
organizam o nosso pensamento, estruturam o modo como percebemos o mundo e até
como tomamos decisões cotidianas.
É por isso que, nas últimas décadas, o estudo das
metáforas extrapolou a literatura e passou a dialogar com áreas como a
linguística cognitiva, a publicidade, o design e a semiótica visual.
Um dos autores que mais contribuiu para essa
virada foi o pesquisador Charles Forceville, que defende que metáforas
também podem (e devem) ser analisadas quando aparecem em imagens –
especialmente em contextos multimodais como propagandas, filmes, memes e
embalagens.
Neste post, vamos nos apoiar nas ideias de
Forceville para explorar cinco tipos de metáforas visuais que nos cercam –
muitas vezes sem que a gente perceba. Com exemplos reais, brasileiros e
simbólicos. Porque metáfora, por aqui, é leitura do mundo. 🌍🧠
📌 Ver é
interpretar
Existe um
tipo de metáfora que acontece no campo do visual. Não precisa de
"como", “tal qual” nem de "é igual a". Ela acontece quando
algo é representado como se fosse outra coisa. Às vezes, só pela forma. Às
vezes, pelo contexto. Às vezes, pela mistura dos dois.
Essas
metáforas visuais são organizadas de jeitos diferentes, e é sobre isso que
vamos falar hoje. Com exemplos reais, nacionais e cotidianos – porque é aí que
o discurso se esconde (ou se revela).
🍽️ Um exemplo saboroso (e simbólico) de metáfora contextual
Disponível em: https://www.instagram.com/p/DI9aunuRRdV/
Um caso que chama atenção pela criatividade
visual – e também pelo discurso que evoca – é o lançamento da Havaianas “Arroz
e Feijão”. O modelo traz um par de chinelos: um branco, outro marrom, embalados
juntos dentro de uma marmitinha de alumínio. Isso mesmo: uma “quentinha”, no
bom e velho piauiês.
Sozinhos, os chinelos não diriam muita coisa. Mas
o contexto visual – as cores, a disposição, a embalagem – ativa
sentidos que extrapolam o literal:
Chinelo é arroz com feijão
Havaianas é comida brasileira
Moda é cultura popular
Aqui, a metáfora não está nos objetos em si, mas
no modo como eles são apresentados. As cores dos chinelos
remetem diretamente aos tons do prato mais simbólico (e democrático) do Brasil.
A quentinha reforça esse imaginário cotidiano e popular, enquanto o nome do
modelo crava a referência com humor e afetividade.
O discurso que se constrói é o de que a Havaianas
é tão brasileira quanto o arroz com feijão – básica, necessária, cotidiana,
cultural, feita para todos. Mas também carrega ambivalências: ao transformar um
prato cotidiano em produto de moda, há também uma estetização da simplicidade,
um jogo entre o simbólico e o mercadológico.
Se metáforas visuais são jeitos de comunicar
identidades, essa aqui tempera o olhar com memória, classe, consumo e afeto.
🎭 Hamlet no Planalto? Uma
metáfora híbrida em tempos de pandemia
Disponível em:
Essa charge de Clayton representa o então
presidente Jair Bolsonaro segurando uma máscara de um lado e uma caveira do
outro, vestido como Hamlet – personagem clássico de Shakespeare. A fala
adaptada, “Usar ou não usar máscara... eis a questão!”, remete diretamente à
icônica dúvida existencial da peça: "To be or not to be?"
A metáfora aqui não está apenas no texto. Está na
imagem – no corpo híbrido que une dois personagens em um só:
Bolsonaro é Hamlet
Mas essa fusão visual vai além da forma: ela
também carrega um comentário político. Ao incorporar Hamlet, personagem
conhecido pela hesitação, à figura de Bolsonaro, que publicamente hesitou
quanto ao uso de máscaras e outras medidas sanitárias, a charge ironiza e
critica esse comportamento, sugerindo que sua “dúvida” foi trágica, levando a
consequências mortais (representadas pela caveira que responde “Eu não usei!”).
Essa metáfora visual é híbrida porque:
·
O corpo de Bolsonaro é o de Hamlet:
vestimenta, postura, gesto teatral;
·
A referência ao personagem é inseparável da
figura política retratada;
·
A crítica depende dessa fusão visual, não sendo
apenas verbal ou contextual.
Além disso, o efeito da metáfora é intensificado
pelo uso simultâneo de imagem e texto – o que poderia, inclusive, permitir uma
leitura verbo-pictórica complementar.
🍫💋 Quando o gloss engana (e seduz): uma metáfora
visual com gosto de chocolate
Disponível em: https://www.franbyfr.com.br/chocochilli-fran-by-franciny-ehlke-edicao-limitada-p142
O ChocoChilli, da linha Fran by Franciny Ehlke, é um gloss – mas tudo nele
grita “chocolate”: a embalagem lembra uma barra, a cor remete ao cacau, e até o
cheiro provoca sensações gustativas. O que vemos aqui é um exemplo claro de metáfora visual por símile, em que um
elemento (o gloss) é comparado a outro (o
chocolate) por meio da estética: cor, textura, embalagem e cheiro
constroem o jogo de sentidos.
Não se trata de um híbrido (o produto não é comestível), mas de um jogo metafórico baseado na semelhança: o
gloss parece chocolate. A
proposta não é apenas visual – ela envolve desejo, cuidado pessoal e prazer
sensorial, deslocando os sentidos típicos do alimento para o universo da
maquiagem.
A metáfora aqui não diz que gloss é
chocolate, mas que é como:
sedutor, indulgente, viciante. Um convite visual (e olfativo) a se “maquiar com
gosto”.
💬 Quando texto e imagem andam de mãos dadas, a metáfora verbo-pictórica
Aqui, a metáfora não se completa sem texto. É a combinação entre imagem e
linguagem verbal que produz o sentido.
📍
Exemplo real: “The night is young”
(Heineken, 2022)
A campanha traz pessoas idosas se divertindo numa balada, com luzes coloridas,
copos de cerveja na mão e expressão de pura alegria. O texto diz:
“The night is young.”
Disponível em: https://updateordie.com/2021/07/10/heineken-the-night-is-young/
Idosos são jovens.
Juventude é atitude.
O slogan sozinho
sugere apenas que a noite está só começando. A imagem, sozinha, mostra um grupo
que rompe a expectativa típica do público-alvo de baladas. Mas é o encontro dos
dois que gera a metáfora: a noite é jovem porque quem a vive é jovem – mesmo
que seja idoso.
A mensagem é emocional e disruptiva: juventude
não é idade, é espírito.
Uma metáfora verbo-pictórica que desafia estereótipos, atualiza discursos sobre
envelhecimento e ancora a marca numa ideia de celebração para todos.
🎨 Quando o design já é metáfora
Metáfora integrada (ou de produto)
Nesse caso, o objeto foi feito para parecer outra coisa. O design já é
discurso. O produto carrega em sua forma o que deseja comunicar.
Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/36591815705428966/
📍 Exemplo real: “Bolsa Milk Carton” – Moschino (2014)
A grife italiana Moschino lançou uma bolsa cujo design imita uma embalagem de
leite. A peça apresenta formato retangular, com detalhes gráficos que simulam
as informações nutricionais e o design típico de uma caixa de leite.
Bolsa é caixa de leite.
Mais do que uma brincadeira estética, o design
aciona memória afetiva e referência cultural. O produto não “imita” o leite – ele
é uma representação visual direta dele. A metáfora é visível, literal e
integrada à forma.
Essa estratégia visual comunica irreverência,
nostalgia e crítica pop ao consumo. Um objeto comum se transforma em ícone de
moda – e discurso visual.
✨ Ver também é ler
Essas
metáforas visuais habitam nosso cotidiano: na propaganda que emociona, na
embalagem que convence, na foto que viraliza. A metáfora acontece quando uma
imagem representa algo que não é ela – mas se faz passar por.
E por trás
de toda metáfora, tem um convite: para sentir, consumir, acreditar ou resistir.
Quando olhamos com mais atenção, percebemos que o discurso nem sempre fala. Às vezes, ele mostra. E, nesses casos, o nosso olhar é quem decodifica, ou recusa.
E você? Que
imagens têm te atravessado ultimamente? Alguma te fez pensar, hesitar, rir ou
recuar? Que metáforas têm se escondido no seu feed? 👁️💭🧃
Vamos
conversar nos comentários.
🔍 Nota pessoal
Caso haja alguma imprecisão conceitual ou leitura equivocada, estou totalmente aberta ao diálogo e às correções. :)
REFERÊNCIAS:
FORCEVILLE, Charles. Pictorial and multimodal
metaphor. In: KLUG, Nina Maria; STOCKL, Hartmut. The language in
multimodal contexts handbook. Berlin: De Gruyter, 2016. p. 1-21. Disponível
em:
https://www.academia.edu/12925438/Pictorial_and_multimodal_metaphor_In_Nina_Maria_Klug_and_Hartmut_St%C3%B6ckl_eds_Handbuch_Sprache_im_multimodalen_Kontext_The_Language_in_Multimodal_Contexts_Handbook_.
Acesso em: 31 maio 2025.
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