ENTONAÇÃO VOCAL: O tom que dá sentido à comunicação
Olá,
leitores, sejam muito bem-vindos a mais uma publicação do Multiletras! Dando
continuidade ao nosso espaço de reflexão sobre os múltiplos modos de produção
de sentido na linguagem, hoje mergulharemos em um campo tão instigante quanto
essencial: a comunicação não verbal. Se na nossa postagem anterior
nos debruçamos sobre a pragmática e a Teoria dos atos de fala – compreendendo
como a linguagem vai muito além do que está na superfície das palavras –, agora é hora de
expandir ainda mais esse olhar e investigar o que dizemos sem
dizer. Gestos, expressões faciais, posturas, olhares, silêncios… tudo isso
compõe um repertório riquíssimo de significados que influenciam, modulam e,
muitas vezes, determinam o sucesso da nossa comunicação.
E você, já se deu conta de quantas mensagens transmite sem sequer abrir a boca? 🚭🚦🚻
A COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL
A linguagem
humana é um fenômeno multifacetado que transcende
a materialidade da palavra escrita ou falada. A comunicação não verbal,
nesse contexto, constitui um campo essencial para a compreensão da produção de
sentido, sendo composta por elementos como gestos,
expressões faciais, posturas corporais, contato visual, distanciamento físico e
aspectos vocais não segmentais, como a entonação (Knapp; Hall, 2010).
Embora a tradição linguística estrutural tenha privilegiado o estudo da língua como um sistema autônomo de signos, a ampliação dos estudos da linguagem permitiu que elementos contextuais e interacionais ganhassem centralidade. A comunicação não verbal, portanto, passou a ser reconhecida como componente constitutivo da significação em contextos comunicativos.
A ENTONAÇÃO
A entonação na frase "Eu não dei o livro para ele" pode alterar significativamente seu significado, dependendo da ênfase dada a cada palavra.
Algumas interpretações possíveis:
"Eu não dei o livro para ele."
Ênfase em "Eu": Indica que outra pessoa deu o livro, não você.
"Eu não dei o livro para ele."
Ênfase em "não": Destaca que você não realizou a ação de dar o livro.
"Eu não dei o livro para ele."
Ênfase em "dei": Sugere que você pode ter emprestado ou mostrado o livro, mas não o deu.
"Eu não dei o livro para ele."
Ênfase em "o livro": Implica que você deu outra coisa, mas não o livro.
"Eu não dei o livro para ele."
Ênfase em "para ele": Indica que você deu o livro para outra pessoa, não para ele.
Como aponta
O’Connor (1973), a entonação é um sistema altamente sensível ao contexto e à
intenção comunicativa, sendo essencial para a interpretação correta dos
enunciados orais. No campo da análise da conversação, Brazil (1997) explora a
entonação como estrutura organizacional da fala, argumentando que ela indica ao
interlocutor como a informação deve ser processada e interpretada.
No entanto,
ao transpor a linguagem falada para a escrita, a entonação enfrenta uma série
de restrições. A escrita, sendo um sistema visual e linear, carece dos recursos
acústicos que permitem variações melódicas. Para compensar tal ausência, o
escritor recorre a marcas gráficas como pontuação (reticências, pontos de
exclamação, interrogação), uso de itálico ou negrito para indicar ênfase (como fazemos aqui no blog), e
construções sintáticas específicas para sugerir hesitação, surpresa ou dúvida.
Apesar dessas estratégias, a representação da entonação na escrita permanece
limitada e muitas vezes sujeita à interpretação subjetiva do leitor (MARCUSCHI,
2001).
Esse desafio é particularmente relevante em contextos de comunicação digital, como mensagens de texto e redes sociais, nos quais os usuários buscam constantemente adaptar o texto escrito para simular a expressividade da fala. A popularização de emojis, onomatopeias e variações gráficas não convencionais reflete essa tentativa de resgatar, ainda que parcialmente, as nuances prosódicas da oralidade (KOCH; ELIAS, 2017).
Portanto, a
entonação vocal, como componente da comunicação não verbal, desempenha papel
fundamental na construção do sentido na linguagem falada. Sua análise permite
compreender como os interlocutores negociam significados, marcam atitudes e
estabelecem relações sociais por meio da voz. Ao mesmo tempo, revela os limites
da linguagem escrita em reproduzir com fidelidade a riqueza expressiva da
oralidade.
NA PRÁTICA SOCIAL
Trazendo um pouco para a Análise do discurso, o chamado “sotaque CLT” viralizou nas redes sociais como uma forma bem-humorada de representar a comunicação no ambiente de trabalho, especialmente em interações entre prestadores de serviço e clientes. Essa maneira de falar, marcada por um tom mais suave, pausado e polido, reflete as dinâmicas de subalternidade que permeiam o mundo corporativo e o setor de atendimento ao público (Observem que o termo SOTAQUE não está no sentido cunhado pela sociolinguística, há aqui um erro de nomenclatura, mas isso não diminui a importância do fenômeno). Nesses vídeos, os criadores de conteúdo exploram como a necessidade de manter a cordialidade e a postura profissional muitas vezes impõe uma suavização na fala, tornando-a quase melódica, com entonações estrategicamente moduladas para evitar confrontos diretos. Há um esforço constante para amenizar conflitos e manter a hierarquia implícita nas relações de poder entre cliente e prestador de serviço.
Essa entonação se torna um escudo contra a impaciência ou hostilidade do cliente, ao mesmo tempo que reforça a assimetria da relação: enquanto o prestador de serviço deve se manter contido, o cliente, muitas vezes, tem a liberdade de expressar suas emoções sem filtros. Ao satirizar essa realidade, os vídeos que exploram o “sotaque CLT” expõem, de forma crítica e cômica, como a linguagem é usada para mascarar desigualdades e tensões sociais, transformando a voz em uma ferramenta de conformidade e, ao mesmo tempo, resistência velada.
Disponível em: https://www.instagram.com/victorcaladoo/reel/C-xoEYvOC55/
REFERÊNCIAS:
BRAZIL,
David. The Communicative Value of Intonation in English. Cambridge:
Cambridge University Press, 1997.
CRYSTAL,
David. Prosodic Systems and Intonation in English. Cambridge: Cambridge
University Press, 1969.
KOCH,
Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda. Ler e compreender: os sentidos do texto.
4. ed. São Paulo: Contexto, 2017.
KNAPP, Mark
L.; HALL, Judith A. Comunicação não verbal na interação humana. 7. ed.
São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2010.
MARCUSCHI,
Luiz Antônio. Fala e escrita na construção dos gêneros orais e escritos. In:
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade.
São Paulo: Cortez, 2001. p. 17–35.
O’CONNOR,
J. D. Phonetics. London: Penguin Books, 1973.
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